Desde que assumiu, em janeiro último, o governo faz vítimas em seus arroubos intervencionistas nos órgãos públicos federais, sempre sob o pretexto de melhorar a eficiência da gestão.

Foi assim quando substituiu a diretoria do ICMBio por militares – e também quando, sob a insana alegação de que o Inpe publicava dados para agradar ONGs ambientalistas, trocou o respeitado cientista que ocupava a presidência desse reconhecido instituto por um comandante da Aeronáutica.

Agora, a bola da vez foi o Incra. Tal como nos casos anteriores, chamam a atenção as razões para justificar a intervenção – todavia, dessa vez os militares (que já haviam sido colocados lá) são os exonerados: o presidente, um coronel do Exército, e toda a diretoria, integrada por oficiais de alta patente.

Criado em 1970, durante o auge do regime militar, ao Incra foi atribuída a responsabilidade pela implementação da reforma agrária, mediante a consumação de 3 medidas principais, nessa ordem: desapropriação da terra destinada à reforma agrária; assentamento dos produtores; titulação da gleba em nome do respectivo beneficiário.

Os últimos assentamentos ocorreram no final do século XX. Hoje, as estatísticas demonstram que a regularização fundiária configura a principal demanda dos pequenos e médios produtores rurais.

Não à toa, quando da elaboração, em 2008, do Plano Amazônia Sustentável – uma iniciativa notável, que reconhecia o uso econômico da biodiversidade florestal como referência para o processo de ocupação na região –, a titulação das terras foi apontada como peça-chave para a promoção de um novo modelo produtivo.

Dessa forma, foi criado, em 2009, o Programa Terra Legal, com o propósito de acelerar a titulação, usando a estrutura ociosa do Incra (que, aliás, por pouco não foi extinto nos anos 1990).

Havia, contudo, um emaranhado normativo que dificultava a regularização da propriedade em favor do ocupante da terra, ou posseiro, tornando o processo lento e, às vezes, interminável. 

Na verdade, as exigências impostas tinham uma razão de ser, já que se destinavam a impedir a titulação da terra em favor dos chamados “grileiros”. Bastante presente no imaginário de acadêmicos e políticos de esquerda, a tal “grilagem” de terras, a despeito da ausência de dados sobre sua ocorrência, é tida como recorrente na realidade rural amazônica.

O fantasma da grilagem assombrou o Programa Terra Legal, levando-o ao fracasso: até 2016, foram expedidos, em média, menos de 3.000 títulos por ano. Esse resultado sofrível foi alterado com a edição da Lei 13.465/2017, que simplificou o procedimento, possibilitando que, em 2017 e 2018, a média de expedição subisse para cerca de 30.000 títulos anuais.

Contudo, a eficiência demonstrada pela equipe que comandou o Incra até dezembro passado não será repetida em 2019, já que até agora o número de propriedades tituladas não chega a 2.000. A responsabilidade por esse pífio desempenho, segundo informa o próprio governo, recai sobre a diretoria do Incra.

Os militares que comandavam o órgão desde fevereiro alegam, em sua defesa, para justificar o reduzido número de títulos expedidos, que, ao extinguir o Programa Terra Legal, o governo retirou orçamento. Sem dinheiro, não há como titular as terras.

O Ministério da Agricultura rebate, por seu turno, que a regularização fundiária, em especial na Amazônia, se reveste de alta prioridade e, portanto, conta com recursos orçamentários suficientes.

Diante do baixo nível técnico observado em diversas áreas do governo federal, o Ministério da Agricultura é uma das poucas exceções de eficiência gerencial. Entretanto, não se pode descartar a hipótese de que os militares que ora deixam a diretoria do Incra também tenham sido atemorizados pelo fantasma da grilagem.

Não há dúvida técnica quanto ao fato de que a titulação das terras na Amazônia é condição essencial para trazer segurança jurídica ao processo de ocupação produtiva da região – inclusive porque permite que se cobre dos proprietários o cumprimento da legislação ambiental.

Enfim, o certo é que a regularização fundiária precede a discussão acerca da saída para a economia da Amazônia – se por meio da sustentável exploração da biodiversidade florestal ou do insustentável desmatamento para criar boi. Mas o prazo para concluir a titulação das terras terminou no século passado.

O desmatamento – tanto o ilegal quanto o legalizado – só pode ser zerado se as terras tiverem dono. Simples assim. 

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