Cheia não é alagação. Os rios amazônicos são, a cada ano, julgados e condenados pela população por conta do seu regime hídrico. Enquanto no verão, as secas, cada vez mais extremas, põem em risco o abastecimento d’água, no inverno, as águas sobem o suficiente para que todos fiquem à espera dos desabrigados.

Mas o comportamento dos rios é consequência do modelo de ocupação que ocorre ao longo das bacias hidrográficas. É simples de entender que, com as constantes enxurradas, as chuvas que caem sobre uma terra desmatada, que não tem a proteção da floresta, levarão uma boa quantidade de barro e areia para o leito do rio.

Parece simples de entender também que esse barro e essa areia alteram a profundidade do rio, deixando-o mais raso e, por isso, cada vez mais sem condições de receber a quantidade de água que recebia antes. Não há dúvida que irá transbordar.

Por outro lado, a ausência da floresta, sobretudo nas margens dos rios – a denominada mata ciliar –, diminui a capacidade de retenção de água da bacia hidrográfica, o que leva a secas cada vez mais graves. Em casos extremos, a exemplo do Acre, o risco de o rio “apartar” existe.

Os rios amazônicos são conhecidos por suas flutuações de vazão, que acontecem naturalmente, no decorrer das duas estações chuvosas do ano. Diferenças de cotas de até 8 metros são comumente observadas entre o verão (maio a outubro) e o inverno (novembro a abril) amazônicos.

Diferenças que se maximizam por causa do desmatamento. Significa dizer que por meio de um programa agressivo de revegetalização das margens dos rios, no curto prazo seria possível reverter essas situações-limite, pelas quais os rios são injustamente hostilizados.

Talvez, dessa forma, com os rios retornando aos seus regimes de flutuação natural de vazão, fosse possível distinguir e diferenciar dois estágios importantes para o diagnóstico preciso dessas flutuações, as  cheias e as alagações.

As cheias dos rios são culturalmente esperadas todos os anos, como sinônimo de fartura. As cheias significam que os rios trouxeram novos nutrientes e que a colheita será promissora. Significam algo como renovação e esperança de dias melhores.

As alagações, ao contrário, são consideradas catástrofes.

Na Amazônia, de tempos em tempos, costumam ocorrer alagações. Trata-se de fenômeno cíclico, a despeito da impossibilidade de determinar sua ocorrência com exatidão. As últimas, de 1988 e de 2000, deixaram centenas de desabrigados e despertaram o espírito solidário do brasileiro, diante de uma comoção social que sacudiu o país.

Todavia, cheias não são alagações, e por isso não fazem vítimas.

Se, a cada inverno, surgem os desabrigados, isso só pode significar, primeiro, que as pessoas estão morando em locais impróprios, alcançados pelas cheias naturais dos rios; e, segundo, que transformar cheias em alagações parece ser um bom negócio para todos.

Se uma família, todos os anos, é atingida pelas cheias e, não obstante, insiste em retornar para o mesmo lugar, significa, sem fazer juízo de valor, que está optando por receber ajuda da Assistência Social e da Defesa Civil; por outro lado, o auxílio aos desabrigados não pode ser rotina da ação pública, sob pena de se tornar meio de obtenção de dividendos eleitorais.

Todavia, quando, ao invés de fartura, as cheias se tornam sinônimo de catástrofe, tem alguma coisa errada aí, e com certeza, não é com o rio.

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