As pessoas, em geral, recebem com alegria o período de cheia dos rios amazônicos: é a certeza de que novos ciclos de fartura estão por chegar.

Depois de castigada de maneira perigosa por uma seca prolongada – os rios em pleno fevereiro ainda estavam com vazão que poderia comprometer o abastecimento de água – a Amazônia enfim nos mostra sua mais pujante paisagem: a das cheias.

E, para além da exuberante paisagem, os rios com muita água, em especial na Amazônia, aumentam a quantidade de peixes, que são atraídos pelos nutrientes trazidos pela ampliação da vazão; a vazante, por sua vez, traz com ela a fertilidade decorrente da adubação dos leitos dos rios: as cheias significam fartura, renascimento, renovação…

Instintivamente, todos sabemos disso. Desde a antiguidade, o período das cheias dá ensejo a festejos e agradecimento aos deuses. É por isso que, muito embora a imprensa – ao confundir cheias com alagações – teime em noticiar tragédias, os habitantes da região, nessa época, ficam alegres, e voltam a estabelecer uma relação harmoniosa e ativa com suas águas.

A água é o recurso natural do futuro. Tem sido tema central nas discussões mundo afora. Ninguém duvida de sua importância estratégica para o futuro de qualquer nação. Muitos países disputam as fontes de água como questão de sobrevivência nacional. Dizem os especialistas que a água, ou a falta dela (trazendo à realidade local, as secas ou as cheias), acarretará, no futuro, mais guerras que o petróleo provocou no século passado.

Acontece que a quantidade de água no planeta é uma só, não muda. Assim, se num determinado lugar não há mais água, embora já tenha havido, significa que essa água foi parar noutro lugar.

Enquanto muitos países se vêem às voltas com secas profundas e são obrigados a apelar para tecnologias complexas, que envolvem bombeamento de nuvens com iodeto de prata para fazer chover, ou recorrem a uma onerosa dessalinização, a fim de aproveitarem a água do mar, a Amazônia se esbalda numa fartura que não deveria parecer tragédia.

Para se ter idéia de como as cheias são importantes para a Amazônia, basta considerar que as águas de um rio levam dezesseis dias para se renovarem; a dos pântanos, cinco anos; a dos lagos, dezessete anos; e as águas subterrâneas, presentes nos aqüíferos, mil e quatrocentos anos.

Confundirem-se cheias com alagações é equívoco que se repete ano após ano. Todavia, para citar apenas uma diferença, enquanto as alagações ocorrem em espaços temporais longos, de mais de 10 anos, por exemplo, as cheias acontecem (se a natureza seguir o seu curso) todos os anos.

Se todos os anos pessoas e famílias são desabrigadas e se tornam vítimas das cheias, é porque há algo de errado, muito errado. E a culpa não é do rio.

Está-se construindo no leito dos rios, e por isso, nas cheias, tem muita gente ficando sem casa. Não se permitir que se construa em áreas abaixo das cotas mínimas e retirar as pessoas desses locais é um imperativo público, um dever do Estado.

No mundo, segundo a ONU, mais de um bilhão de pessoas não têm acesso à água doce e potável. Se os amazônidas temos fartura desse recurso único no planeta, devemos nos alegrar, cuidar e reverenciar. O sensacionalismo da imprensa, as omissões públicas, e as tragédias anunciadas são fatos que ocorrem todos os dias e em muitas ocasiões, mas não pode comprometer nossa relação com o rio.

Muita água na Amazônia, longe de significar tragédia, deve ser motivo de festa: uma benção, como costumamos dizer.

Download .DOC

xxxx